Opa, tudo joia? Marco Ferro, colaborador da Cajueira, aqui!
Segurança pública foi uma das pautas mais exploradas nas eleições passadas. Discursos inflamados, promessas duras e, na prática, pouco enfrentamento. Por trás do teatro dos palanques, existem engrenagens convenientes para quem está no poder. Enquanto isso, a população assiste à encenação.
Ricardo Moura, jornalista e editor do blog Escrivaninha, do Ceará, conhece bem essa realidade. Criado em 2020, o blog se dedica a um jornalismo investigativo e artigos de opinião.
Conversamos com Moura sobre a violência no Ceará, estado que tem quatro cidades entre as mais violentas do Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2024. Leia a entrevista abaixo. Ele falou sobre a importância de fazer coberturas policiais a partir dos territórios e desenvolver a “sensibilidade da rua”.
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Simbora?
Sirva-se!
A questão das facções criminosas tem dominado as discussões sobre segurança. Mas o Rio de Janeiro e São Paulo ainda aparecem muito mais nessa cobertura. Como você vê a cobertura de segurança no Brasil?
Embora a criminalidade desses dois estados tenha relação com a nossa, o que ocorre lá é diferente do que ocorre aqui. Por isso, é preciso produzir relatos, análises e notícias que mostrem a nossa realidade e a diferença com esses locais. Fortaleza, por exemplo, não tem tantos morros como o Rio, então a organização da criminalidade é diferente. Nossa economia também não opera nos mesmos patamares de São Paulo. Aqui, vemos uma aproximação com gangues juvenis e com o que acontece na América Latina e na América Central – grupos territorializados que vão se organizando e, de alguma forma, estabelecendo relações com os grandes grupos do Sudeste. Outra questão é a pulverização das facções nos estados, com grupos menores se fracionando, sempre por meio da violência, o que contribui para as altas taxas de homicídio.
Além disso, há uma assimetria na cobertura: disputamos espaço com os grandes veículos e até mesmo na definição de quem tem o poder de comentar. Um pesquisador do Sudeste tem sua autoridade reconhecida e pode falar sobre segurança no Nordeste. Mas um pesquisador do Ceará pode comentar sobre Rio e São Paulo? Pode. Mas por que não é ouvido? Essa lógica se reflete no tempo e no espaço dedicados às coberturas. Isso faz com que muitas vezes consumamos uma cobertura que não reflete a nossa realidade e não compreendamos o que acontece ao nosso redor.
Na última edição da Cajueira, falamos sobre pertencimento e sobre como a cobertura jornalística muda quando quem escreve conhece o chão que pisa. No blog Escrivaninha, como essa proximidade com o estado e a região se reflete no seu trabalho?
O jornalismo é uma atividade muito ligada ao território, é preciso gastar a sola do sapato. E quando se lida com segurança pública, essa verdade se torna ainda mais pertinente.
Muita coisa pode ser feita pelo digital, mas é fundamental desenvolver uma sensibilidade da rua. Isso também significa conhecer os bairros, as comunidades, se orientar e navegar pelas áreas sobre as quais se escreve, ter relação com pessoas periféricas, ouvir o que elas trazem, estar presente em algumas situações – não apenas quando acontece algo noticiável, mas no dia a dia. Isso dá vivacidade e sensibilidade ao que se escreve.
Sobre o blog, em que contexto surgiu o Escrivaninha? Você sentiu que havia alguma lacuna que precisava ser preenchida?
Eu entrei no jornalismo policial por uma oportunidade, não era minha intenção inicial, mas fui. Em 2014, passei a escrever uma coluna quinzenal sobre segurança pública no jornal O Povo. Durante a pandemia, havia um grande fluxo de informações, que eu compartilhava nas minhas redes pessoais. Então pensei: ‘Não faz sentido dar vazão a isso só pelas redes, é interessante ter uma ferramenta específica’. Assim surgiu o Escrivaninha: um espaço para textos da coluna, produções próprias e até reportagens dentro desse segmento.
O blog tem essa perspectiva: fazer as pessoas olharem para o lado e tentarem entender o próprio contexto, sem assumir que a realidade de outros estados se aplica à nossa. Há muitas diferenças, muitos detalhes, e tudo isso pode ser explorado do ponto de vista jornalístico
Antes das eleições, você escreveu: “É o crime não mais como um poder paralelo, mas como um poder em plena simbiose com o Estado”. Pode explicar um pouco?
Quando analisamos a história do crime organizado, percebemos que ele sempre esteve presente e integrado a outras estruturas. Trazendo esse cenário para o contexto atual, observamos que os grupos criminosos vêm se organizando territorialmente, estabelecendo normas e regulando a vida das pessoas. Com o tempo, essa atuação os levou a se inserir na política, especialmente na esfera municipal, onde conseguem acesso a obras, iluminação pública e outros serviços. A partir desse espaço, passam a fraudar contratos e acumular recursos, financiando candidatos que, uma vez eleitos, favorecem as organizações.
Acredito que essa relação se tornou mais evidente a partir de 2020, quando esses grupos ganharam mais força e começaram a construir plataformas políticas de apoio. No ano passado, essa dinâmica se intensificou ainda mais.
Um ponto importante de ser destacado é que o crime organizado só existe porque há uma intricação com o Estado. Estamos falando de uma rede que envolve criminosos, empresários, agentes estatais e pessoas que fazem vista grossa. São pessoas que estão conectadas com aquele grupo, tornando o combate a essas organizações muito mais difícil. Afinal, como erradicar o crime quando parte do próprio Estado está envolvida?
Outro aspecto é a “governança criminal”. Em algumas áreas, a ação do Estado acaba fortalecendo o crime. Um exemplo disso é a superlotação carcerária. Quando pessoas sem antecedentes criminais são presas, acabam sendo recrutadas dentro das prisões. Elas entram em contato com facções, suas famílias passam a ser extorquidas e, ao sair, retornam para suas comunidades já inseridas nessas organizações. Se houvesse um investimento maior em penas alternativas e outras estratégias, poderíamos reduzir esse fluxo de novos membros para os grupos criminosos. Mas, no modelo atual, as prisões estão superlotadas e controladas pelas facções, muitas delas até divididas entre diferentes grupos para evitar conflitos internos. Esse cenário reforça ainda mais a estrutura do crime organizado.
No Ceará, como se dá essa relação entre política e crime organizado?
No cenário pós-eleitoral, a gente tem que observar a continuidade das investigações. Por exemplo, a Polícia Federal já realizou diversas operações contra candidatos eleitos sob denúncia. Há casos graves, como o de um prefeito de uma cidade do interior acusado de ter sido financiado por grupos criminosos. O desafio agora é aprofundar essas investigações e retirar essas pessoas da política, pois elas passam a ter acesso a recursos estratégicos, como contratos públicos e monitoramento da cidade.
Em municípios menores, essa influência é ainda mais preocupante. A polícia, muitas vezes, depende do apoio logístico da prefeitura e, se uma gestão comprometida com o crime tem acesso a informações sigilosas, como a escala de policiamento da semana, isso coloca em risco até mesmo agentes que não estão alinhados a esses grupos. Além disso, em cidades pequenas, onde todos se conhecem, o poder dessas organizações se torna ainda mais absoluto. Por isso, eu acho que tem que haver, realmente, um trabalho contínuo de combate a essa simbiose, criar mecanismos que dificultem essa relação.
O grande problema dessa aliança entre crime e poder público é justamente a sua invisibilidade para quem não está diretamente envolvido. Você pode, sem saber, ser extorquido ou sofrer algum tipo de perseguição e, ao buscar ajuda das autoridades, descobrir que o próprio Estado está comprometido.
Para um comerciante do interior, por exemplo, denunciar uma ameaça à prefeitura pode ser um risco real se houver ali uma conexão com o crime – seja por meio de um vereador, de um servidor ou de qualquer outra figura influente. Nesse cenário, o perigo não distingue ninguém: afeta do grande ao pequeno.
Você já enfrentou ameaças ou tentativas de silenciamento por causa do seu trabalho?
No nosso trabalho, temos o máximo de cautela para divulgar informações apenas quando há segurança na apuração e, de preferência, com algum tipo de documentação que respalde a denúncia. Isso reduz o risco de ameaças e tentativas de silenciamento. O cenário se torna ainda mais delicado quando as críticas envolvem agentes estatais, pois há uma reação organizada para deslegitimar a denúncia. Nessas situações, redobramos os cuidados na apuração.
Já em relação a grupos criminosos, nunca recebemos ameaças diretas. Isso se deve, em parte, às precauções que tomamos: evitamos nos expor em determinados locais, buscamos sempre interlocutores da comunidade e adotamos medidas de segurança. Nosso objetivo não é ser herói, e sim revelar situações e apontar questões sem comprometer nossa integridade.
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