
Oiê, tudo bem?
Esta edição é assinada pelo jornalista e escritor potiguar Octávio Santiago, autor do livro “Só sei que foi assim: a trama do preconceito contra o povo do Nordeste”. Convidamos Santiago para refletir sobre a criação da “Marca Nordeste”, uma iniciativa importante para a divulgação turística da região, mas que deixou de fora designers e profissionais de criação da terra na sua produção.
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Um cheiro! Sirva-se!
A gaiola da Asa Branca
A Asa Branca está diferente. O pássaro recrutado a ser símbolo do Nordeste agora é outro, com novas cores, estilizado, numa pretensa celebração da diversidade. Uma região tão sujeita a ser definida – e reduzida – por símbolos, vê novamente ameaçada sua maior riqueza: a de abrigar diferenças.

A iniciativa, guiada pela Embratur, vem embalada na retórica da encantação. Apoia-se na força do coletivo, essa unidade supostamente mágica que garante a coesão do Nordeste, para atrair turistas e investidores estrangeiros. O argumento é o de unir esforços antes fragmentados para competir com Cancún (uma cidade) e com o Caribe, território consolidado no imaginário estadunidense como destino de desejo tropical.
A cruz e a espada têm lugares certos nessa história. De um lado, o discurso é o do desenvolvimento de uma das frentes mais fortes da região, o turismo, especialmente porque a prática é apagar outras possibilidades econômicas para além do agricultável. Do outro, a vontade dos múltiplos Nordestes de se revelarem vai sendo, mais uma vez, enquadrada em uma definição regional, um símbolo, um logo.
Talvez, muito talvez, isso não fosse um ponto sensível se a história do Nordeste – recente como é – não tivesse sido pautada justamente pelas reduções. Aliás, pautada por uma vontade de reduzi-lo, dentro de um projeto político arquitetado, a princípio, pelas elites do “Sul” e também pelas do próprio Nordeste. O Nordeste das secas e o Nordeste das praias ofuscam uma complexidade de agendas e trajetórias que, até hoje, subtraem possibilidades. Ou se é retirante em busca do Eldorado paulista ou se vive prostrado numa rede, balançando-se ao sabor da maré.
Mas há um ponto sobre o qual não há discordância: o conceito criativo promete divulgar “um destino que é muito mais do que se sabe”. Eis aqui uma verdade incontestável. Antes mesmo da vontade de mostrar o Nordeste ao mundo, o desconhecimento começa dentro do próprio Brasil. A metonímia da nordestinidade continua impregnada nos discursos e criando suas mazelas. O poder público, por sua vez, acompanha o baile estereotipante da dita “grande mídia” e se agarra a símbolos redutores sempre que o Nordeste entra em cena. E, nessa dança, sabemos bem quem conduz a valsa e quem sai com o pé machucado.
As agências de viagem do Sul e Sudeste já flertam com essa prática há tempos. “Férias no Nordeste”, anuncia o cartaz, e de repente, do sul da Bahia ao oeste do Maranhão, tudo vira um mesmo lote de 10×30 metros, homogêneo, exótico, embalado para consumo. Não há como não acessar aqui a redução tão usada como projeto histórico de apequenamento. Faltam, contudo, dados públicos que mostrem o quanto essa embalagem doméstica realmente beneficiou o turismo interno, para justificar agora sua tradução “internacional”.
Apesar de outros números apresentados como animadores, relativos ao aumento de voos, o que se vê na prática é o contrário: capitais nordestinas isoladas, conectividade precária, passagens que custam mais caro para ir a Maceió ou Aracaju do que dos Estados Unidos ao Caribe. A Latam, neste ano, cortou rotas como Natal–Rio e São Luís–Teresina. Não há como anunciar um produto, colocá-lo na vitrine e manter a porta da loja fechada.
A exclusão de agências nordestinos (e há muitas!) na criação de um projeto que se pretende representar a região também voou em falso. O trabalho ficou a cargo da paulistana Design Bridge and Partners, que comunicou a novidade nas redes sociais com excessos de “oxe” e “arretado”. Clichês imbatíveis até com os “copywriters”. Já vimos essa novela (expressão usada de propósito) tantas vezes. Segundo a agência, o Nordeste é “feito de sotaques”, numa validação, agora institucional, da falsa ideia de que o celebrado eixo Rio-São Paulo não possui os seus. Como se o “não sotaque” fosse possível. Difícil, assim, sustentar o otimismo.
Ainda que algum nordestino seja convocado às pressas para legitimar o time criativo, caberia às agências do Nordeste narrar a si mesmas. Afinal, já se passaram cem anos desde que o “Nordeste” foi estabelecido no papel, e, até aqui, quem insiste em defini-lo é o “Sul”. A disputa é pela palavra: até para dizer que a redução pela redução não nos interessa. Até para que os nordestinos sintam que há, na iniciativa, um desejo de valorizá-los. Não só os símbolos, mas os sujeitos. O discurso de valorização tropeça na prática da preterição.
Justo quando o Nordeste tenta exibir sua pluralidade, seus múltiplos Nordestes, reaparece um novo rótulo matutado fora da região. O Nordeste tem, agora, um logotipo, um selo unificador para seus nove estados. A chegada incômoda, porém, não altera os planos. A habilidade necessária, na marcha, é a de acomodar diferenças sob o mesmo guarda-chuva, sem apagá-las. E sem caricaturas. Asa Branca, urubu, carcará, ave de xilo colorida… bom mesmo é voar – livre – nos ares do existir.
“Problematiza-se tudo”, dizem os interessados. Mas são cem anos de engessamento, e aí, não há como tardar mais o direito de fala. E olha que a militância descansa, sim. Este ano, por exemplo, talvez eu passe as férias no Sudeste. Um pãozinho de queijo com café, uma moquequinha capixaba, lá na praia de Ipanema, entre uma garoa e outra. Que trem bão, mano! Vou ficar, nesse rolê, de boa.

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