Por Nayara Felizardo
Assino essa edição com uma entrevista que decidi fazer no instante em que li os primeiros poemas do livro Asma, um épico da escritora e poeta pernambucana Adelaide Ivánova, publicado recentemente pela editora Nós.
Por meio de Vashti Setebestas, uma personagem desbocada, vingativa, insubmissa, caótica e imperfeita, Ivánova fala de questões como violência sexual, misoginia, mudanças climáticas, imigração e mais uma dezena de problemas universais – tudo isso em “nordestinês”.
A heroína é uma mulher com bigode, uma garrafa de cachaça na cabeça, uma cobra no cabelo e um sapato com salto de faca. Vashti tem muitos amantes e sai pelo mundo, ao longo dos séculos, desrespeitando regras e leis que nunca a respeitaram, porque não foram feitas para gente como ela. Ou como nós.
Igual a Vashti, Ivánova rodou por muitos lugares. Saiu de Recife para São Paulo e, atualmente, mora em Berlim. Lá, atua em movimentos sociais pelo direito à moradia, assunto que também está em Asma.
Na nossa conversa, falamos sobre o bairrismo vocabular que Adelaide fez questão de usar na sua obra e que me tirou gostosas gargalhadas. Do nada, eu estava lendo expressões como “toba”, “priquito”, “filho de guaiamum” ou uma frase que só faria sentido para quem conhecesse a entonação correta.
Também falamos da incapacidade da justiça burguesa de fazer justiça, de como o capitalismo mói viado, sapatão, trans, preto, cigano, imigrante e qualquer pessoa que não se encaixe no sistema.
Por fim, falamos de como Vashti Setebestas nasceu para que Adelaide tirasse de dentro de si um bolo de sapos que precisou engolir ao longo da vida. Leia a nossa entrevista com ela:
O que mais gostei de Asma foi ler expressões muito específicas do “nordestinês”. Algumas delas, para fazer sentido, você precisa saber até a entonação correta. Foi sua intenção provocar esse sentimento de identidade no leitor nordestino?
Pensei, pensei demais. Eu queria que o leitor nordestino se sentisse valorizado, pois frequentemente somos vistos como chacota no Sul e no Sudeste, exatamente por causa do que é a nossa força, esse vocabulário rico que dribla as convenções do português europeu e do português brasileiro de televisão.
Eu queria muito contribuir para esse giro, dos humilhados sendo exaltados. Queria que o leitor se sentisse parte dessa brincadeira.
Por causa desse bairrismo vocabular, ou por qualquer outro motivo, sua obra já foi reduzida a literatura nordestina ou regional, mesmo tratando de problemas universais como imigração, machismo e violência sexual?
Ainda se falou pouco sobre o fato de eu ser uma autora nordestina escrevendo em nordestinês, com uma personagem principal que não é nascida no Nordeste, mas que vem de todos os lugares. A minha ambição é que ela seja uma mulher que representa todas as mulheres da classe trabalhadora do mundo. Isso não foi tematizado o suficiente.
O livro tem sido rapidamente colocado na gavetinha de “livros feministas”, o que não me incomoda, mas está começando a me deixar um pouco frustrada. Eu gostaria de discutir outros assuntos que também são importantes.
Eu quero falar sobre mudança climática ou sobre a libertação animal e, obviamente, sobre a dignidade humana do brasileiro nordestino.Ainda não foi rotulado como uma literatura regional. Até lamento que eu não tenha tido a oportunidade de discutir isso.
Eu amo Vashti Setebestas. Queria ser sua amiga. Ela é desbocada, rancorosa, afrontosa, vingativa, insubmissa e, sobretudo, empática. O que é possível conhecer de você a partir dela?
O motivo pelo qual eu vim de Recife para São Paulo e depois vim para a Europa foi uma série de injustiças tão grandes que não encontram solução na justiça burguesa.
Eu nunca vi os meus agressores, nos meus 42 anos, sofrerem alguma consequência pelas grandes e pequenas agressões que me fizeram. Eu estava com esse negócio encangalhado, um bolo de sapo que tinha que engolir.
Criar a Vashti foi uma forma de ter uma personagem que não está esperando mais que aconteça algum tipo de reparação. Ela simplesmente está botando para lascar, porque ela cansou. Ela é toda esquisita, imperfeita, mas, por outro lado, é muito perfeita na minha cabeça, porque é assumidamente um caos.
É uma personagem que me deu um pouco de medo de colocar no mundo, porque eu sei o lugar de onde estou escrevendo. Mas existia uma vontade de tirar essa bola de dentro do meu coração.
Você usa muitas referências literárias, jornalísticas, musicais e da cultura pop. Houve um trabalho de pesquisa e leituras específicas para escrever esse épico, ou ele é resultado do que você acumulou de conhecimento ao longo dos anos?
Várias informações que estão ali, que parecem ficcionais, aconteceram. Os postos de triagem, para classificar nordestino aceitável e não aceitável, existiram. No primeiro capítulo fala que as mulheres consideradas fofoqueiras eram sentadas em cadeiras com brasa queimando embaixo – aquilo aconteceu.
A gente se acostumou, com as redes sociais, a analisar o mundo e a opinar sobre ele, exclusivamente, baseado em como o mundo faz a gente sentir. Isso tem trazido vários problemas de interpretação da realidade.
Muitas das coisas que eu estava agoniada e que queria resolver com Asma é o por quê de passarmos pelo que passamos sendo mulher, imigrante, pessoa racializada. Por que o mundo é como é?
Eu precisava de respostas que me ajudassem a fazer do livro o mais panfletário possível, o mais bem-sucedido no sentido de convencer o leitor de que você não pode ser viado, sapatão, trans, preto, cigano, imigrante, enquanto o capitalismo existir.
Esse sistema não só vai criminalizar todas as suas iniciativas de tentar viver nesse mundo, como também vai criminalizar suas tentativas de driblar essas regulações. Eu precisava de dados irrefutáveis para provar isso.
Já te vi falando sobre o estranhamento de algumas pessoas por você ter escrito um épico. O que está por trás dessa incredulidade? E como você tem respondido a ela?
Algumas das pessoas que fizeram essa pergunta nem têm consciência do que estão fazendo. Elas estão realmente impressionadas e, sem refletir muito do por quê. A questão está muito atrelada ao racismo e às diversas formas de xenofobia no Brasil.
Quando fazem essa pergunta, eu tento manter a linha por alguns motivos. Eu já tretei demais com o pessoal da literatura no passado, e a única coisa que me rendeu foi ninguém me chamar para as coisas.
Quando uma dessas pessoas me perguntou isso, falei: “Mulher, eu vendo a terra do cordel. Isso já é feito antes de mim. Eu não estou tentando reinventar a roda. Eu só sigo essa tradição”.
Eu queria poder dar uma resposta botando para lascar, fechando com a cara deles. Mas eu escolhi outra tática, porque quero muito que o livro circule o máximo possível. Para isso, tenho feito um jogo de cintura.